segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Dolo ou culpa em crime de trânsito

O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, recentemente, que o delito de homicídio praticado na direção de veículo automotor, quando o motorista está sob efeito de embriaguez alcoólica, não pode ser classificado como doloso. A matéria gerou bastante repercussão porque se imaginou que o motorista bêbado não seria mais punido adequadamente, o que não é verdade.


Alguns esclarecimentos precisam ser feitos, para que não se pense que as leis penais não são cumpridas no País — na verdade, algumas são tão estúpidas e sem sentido que realmente de nada servem. Mas não é o este o caso.

O Código de Trânsito Brasileiro (CTB), de 1997, portanto legislação nova, criou a figura do homicídio culposo no trânsito. Antes havia a figura geral do homicídio culposo que se aplicava também aos acidentes de trânsito.

A redação da lei não seguiu o padrão tradicional nem a técnica penal descritiva adotada no Brasil e, apesar de ser recente, não modificou o problema de mortes no trânsito – ao contrário, nosso País lidera as estatísticas desse tipo trágico de ocorrências.

O homicídio, ou seja, o delito de tirar a vida de alguém, pode ser classificado como doloso ou culposo, dependendo do que se costuma chamar de intenção do agente. Quando o agente tem intenção de matar, é doloso, quando não, culposo.

Em termos gerais, nenhum motorista sai às ruas com seu veículo para matar alguém e aqueles que têm tal intenção procuram outros meios para fazê-lo. Assim, a doutrina penal sempre entendeu que o acidente de trânsito com vítima fatal era homicídio – o motorista tirava a vida da vítima –, mas o era na modalidade culposa, vale dizer novamente, sem intenção. Isto significa que o motorista era e é apenado de acordo com a previsão legal para esse tipo de crime, que hoje é de 2 a 4 anos.

O cálculo para a pena é feito de acordo com a possibilidade de previsão pelo motorista com relação ao acidente. Quanto mais ele tem a capacidade de prever o acidente, mais responsável ele é por este e, portanto, mais alta deve ser sua pena.

Lembre-se de que o crime culposo contém três elementos possíveis: a negligência, a imperícia e a imprudência. Negligência é o não cuidado quando deveria tê-lo. Imperícia é a não habilidade quando ela é exigida. Imprudência é a não reflexão quando ela é necessária. O agente poderia prever o resultado se fosse cuidadoso, se tivesse habilidade para tal ou se refletisse antes de agir.

A sociedade moderna é a sociedade da desatenção. Por quê? Porque são tantos os apelos cotidianos ao nosso cérebro em termos de informação que não conseguimos processá-la adequadamente. Fora o ritmo acelerado do dia a dia aumentado por uma tecnologia que em vez de fazer a vida melhor nos impõe mais pressa e velocidade.



O motorista que mata precisa de uma pena que o faça sofrer não pelo corpo, mas pelo pensamento. Ele deve refletir sobre a gravidade do delito praticado.

As pessoas entram em seus carros e esquecem que estão interagindo com outras no espaço da cidadania, a via pública. Imergem em seus problemas e desligam-se do mundo. Assim, um dos aspectos que deveria ser tratado é a rememoração de que o trânsito é um meio de exercício de cidadania e, em vez de serem criados deveres cujo descumprimento acarreta multas – e cria o antagonismo motoristas versus agentes de trânsito –, deveriam ser efetivados mecanismos de conscientização sobre a prática de transitar motorizado em uma via de acesso público (mas aí a indústria da multa entraria em falência).

Voltemos ao homicídio culposo. O motorista é condenado nessa modalidade. Como vigora a visão encarceradora em nosso ambiente penal, alguns pensam que a punição adequada seria a cadeia. Este é outro erro. O motorista que mata precisa de uma pena que o faça sofrer não pelo corpo, mas pelo pensamento. Ele deve refletir sobre a gravidade do delito praticado. A sanção adequada seria a prestação de serviços à comunidade, de preferência auxiliando em hospitais no atendimento a pessoas vítimas de acidentes de trânsito.

E o motorista bêbado? Ocorre a mesma situação. Sua pena deve ser mais severa, porque ele foi mais irresponsável, mas não tinha intenção de matar ninguém. Talvez, até nestes casos, a lei poderia autorizar penalidade mais grave, o que ainda não ocorre.

Agora, o que não se pode aceitar é, diante da deficiência da lei, alterar-se a teoria penal para tentar punir pessoas de uma forma inadequada apenas para pretensamente divulgar que medidas mais rígidas são tomadas. Indiciar e processar um motorista, bêbado ou não, por homicídio doloso – usando o argumento de que tal motorista assumiu o risco de produzir o resultado – é um absurdo.

É uma violação do pensamento penal produzido nos últimos séculos e um retrocesso no sentido de usar a aparência da lei para praticar a ilegalidade de punir alguém com a privação da liberdade quando esta não é cabível.

Vale dizer, vendo-se a ineficácia da lei, usa-se de um subterfúgio mascarado de interpretação doutrinária para colocar o agente na cadeia e supostamente dar respostas à sociedade. “Prendemos um motorista bêbado”, “fizemos justiça”!

Pode até ser que isso como mecanismo de comunicação acalme a sociedade, porque cadeia impressiona em termos criminais. Porém resolver o problema mesmo, isso não acontece. E quem sofre são aquelas pessoas que perderam um ente querido.

Fonte:#67 Revista Visão Jurídica

João Ibaixe Jr.

Advogado criminalista e escritor; pós-graduado em Filosofia e mestre em Direito; foi delegado de Polícia e assessor jurídico da Febem, atual Fundação Casa; é presidente do CEADJUS (Centro de Estudos Avançados em Direito e Justiça Criminal); autor do livro “Diálogos Forenses” e organizador do “Plano de Legislação Criminal”, de Jean-Paul Marat.